terça-feira, 24 de agosto de 2010

A importância

Carnaval e educação: a importância do Instituto do Carnaval  

Por Bruno Filippo - Coordenador Geral do Instituto do Carnaval

Estudiosos do carnaval costumam aventar hipóteses para o surgimento da expressão “escola de samba”. Nisso há controvérsia, sobretudo porque, nas décadas de 20 e 30, época do surgimento do samba e das escolas, o registro daquele momento histórico era precário. Restringia-se às reportagens publicadas pela imprensa escrita - que, fragmentárias, dificilmente conseguiam captar a transformação por que estava passando o carnaval carioca - e às poucas atas escritas pelos componentes mais zelosos, muitas das quais se perderam com o tempo. Daí a importância da história oral, dos depoimentos dos velhos sambistas, para a preservação da memória do samba.

A entrevista de Ismael Silva a Sérgio Cabral em 1974, reproduzida nos dois livros que o jornalista e escritor dedicou ao assunto (“As escolas de samba – o quê, quem, quando, onde, como e por quê” e  “As escolas de samba do Rio de Janeiro”), é um registro que ficará para a posteridade. Cabral, perguntou-lhe quem sugeriu o nome escola de samba. Ao que Ismael respondeu: “Fui eu”. É capaz de você encontrar quem diga o contrário. Mas fui eu, por causa da escola normal que havia no Estácio. A gente falava assim: “É daqui que saem os professores.” Havia aquela disputa com Mangueira, Osvaldo Cruz, Salgueiro, cada um querendo ser melhor. E o pessoal  do Estácio dizia: “Deixa Falar, é daqui que saem os professores.’ Daí é que veio a idéia de dar o nome de escola de samba.”

A versão de Ismael, talvez, seja a mais conhecida, porém não é a única. O radialista, compositor e cronista Almirante afirmava que a expressão surgira da frase “Escola, sentido!”, entoada no tiro-de-guerra e popularizada após a Primeira Guerra Mundial. É fato que, antes da primeira escola de samba, o rancho Ameno Resedá, o mais importante da história do carnaval carioca, era conhecido como rancho-escola.    

Uma outra versão não contraria totalmente o depoimento de Ismael, apenas lhe acrescenta um detalhe curioso – o de que os jovens compositores do Estácio, que estavam revolucionando a música brasileira ao tornar o samba mais dolente e com notas mais longas, consideravam-se professores, mestres do novo estilo. Por isso, resolveram batizar a “Deixa Falar”, em 1928, como escola de samba. A escola do samba que eles produziam.      

O problema da história oral é simples: por melhor que seja a memória do depoente, sempre estará sujeita a lapsos. Mas, seja qual for a versão correta – não é absurdo imaginar que todas sejam verdadeiras -, a de Ismael, que associa a expressão à presença da escola normal do bairro, é mais interessante para o assunto relativo ao Instituto do Carnaval. Porque, simbolicamente, revela a proximidade do samba e do carnaval com a educação, ainda que, a princípio, fosse um estratagema dos sambistas para minorar o preconceito racial e social de que eram vítimas, tornando-os mais “palatáveis” ante a opinião pública.  A palavra escola teria o poder de conferir respeitabilidade às agremiações. (Antítese do que escreveria, poucos anos depois, o gênio Noel Rosa, em Feitio de Oração: “Batuque é um privilégio/Ninguém aprende samba no colégio”). A proximidade persiste, e não é uma questão apenas de nomenclatura.                

Talvez pareça difícil aos neófitos vislumbrar a função educativa das escolas de samba, por estarem associadas, no imaginário coletivo, à bagunça, à festa, à bebedeira, à carnavalização; mas, em quase oito décadas de existência, seus enredos, as letras de seus sambas, suas fantasias e suas alegorias exaltaram fatos e personagens importantes, massificaram histórias oficiais e subversivas, e tiraram do limbo figuras importantes e desconhecidas da maioria do povo brasileiro. A educação está presente, também, nas agremiações que realizam trabalhos sociais em suas quadras, oferecendo cursos, serviços médicos, esportes e creche.

Pode-se ver a relação entre educação e escola de samba não só pelo potencial do carnaval para levar conhecimento e fortalecer a cidadania – mas pelo interesse das instituições tradicionais do saber em  compreendê-la, em analisá-la, em reconhecer sua importância, em contribuir com sua melhoria, estabelecendo, assim, uma relação recíproca.

A intelectualidade brasileira ainda não reconheceu no samba e no carnaval a importância que ambos têm para a nossa identidade. Considera-os menor, um assunto pouco sério, desimportante quando se trata de tentar compreender o Brasil. Esse desprezo - resquício da influência marxista, em que a análise dos assuntos políticos e econômicos é predominante - é pitoresco, já que somos o país do samba e do carnaval (e do futebol, também, pouco valorizado pelos intelectuais). Trata-se de um estereótipo reducionista, sem dúvida, uma construção histórica e ideológica, mas isso é parte do problema, porque, de fato, o carnaval e o samba, assim como o futebol, são manifestações em que muitos dos nossos dilemas estão retratados.

Nos anos 70, três cientistas sociais, investigando, à luz das teses antropológicas e sociológicas, o carnaval e as escolas de samba, escreveram obras pioneiras, referências em quase todos os trabalhos posteriores: O Palácio do Samba, de Maria Júlia Goldwasser (1975); Escola de samba, ritual e sociedade, de José Sávio Leopoldi (1978); e, ambas de Roberto DaMatta, O carnaval como rito de passagem (1973) e Carnavais, malandros e heróis (1979). Este último livro é um dos grandes clássicos das ciências humanas brasileiras. Atualmente, as universidades e os centros de pesquisa, mostram-se mais interessados no assunto. O número de livros, monografias e teses acadêmicas aumentou de maneira considerável. Algumas universidades criaram núcleos específicos de estudo do carnaval. Até economistas têm destrinchado a importância da festa para a economia do país.

Em outubro de 2005, um novo capítulo dessa relação foi escrito, com o surgimento do Instituto do Carnaval. Realização da idéia que o médico e historiador Hiram Araújo acalentava há trinta anos, o Instituto oferece, entre outras atividades, o primeiro curso superior de carnaval do mundo, e vem ao encontro da tendência irreversível de profissionalização da festa.

O Instituto do Carnaval, tal qual a Deixa Falar, carrega um enorme simbolismo, tão grande que somente aos poucos está sendo percebido. Quando uma universidade cria um curso, qualquer curso, não está apenas lhe reconhecendo o papel relevante na sociedade - está institucionalizando-o, pondo-o no patamar de um saber, de uma ciência. É nesse patamar que hoje está o carnaval, setenta e sete anos depois da criação da primeira escola de samba.

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